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in Revista de psicología (Santiago)
Uma história da internação de ébrios, alcoolistas e vadios durante a Primeira República: lições para as políticas atuais?
Desde os anos 1980, a Reforma psiquiátrica brasileira tem posto em questão o asilo como a pedra fundamental do tratamento, trazendo à cena uma análise política dos dispositivos de atenção à saúde mental. A reforma brasileira abriu espaço para conceitos até então incompatíveis com as práticas psiquiátricas: liberdade, cidadania e direitos humanos. Estas transformações não se estabeleceram apenas como ideais, elas se articularam em instituições abertas, leis e políticas governamentais. Como principais exemplos, pode-se citar a Lei nº 10.216 (2001) e a Rede Nacional de Saúde Mental (Portaria nº 3.088, 2011), que orienta o funcionamento de instituições com prerrogativa de atendimento aberto para pessoas com necessidades de atendimento em saúde mental, como o Centro de Atenção Psicossocial (CAPs), um modelo alternativo aos manicômios. Em três décadas, a assistência em saúde mental se transformou de forma bastante radical e o asilo praticamente desapareceu como dispositivo-chave.
Em geral, este processo, apesar de cunhado de reforma, é celebrado como uma espécie de revolução que libertou a loucura das cadeias da velha psiquiatria. Para tal, se produziram grandes narrativas históricas com estilo quase-épico ou quase-hagiográfico na luta contra as forças conservadoras da psiquiatria (Amarante, 1998; Desviat, 1999). No entanto, pensamos que uma abordagem histórico-crítica possa fornecer ferramentas mais interessantes para questões cotidianas, como as atuais políticas em saúde mental com respeito aos usuários de psicoativos, especialmente o crack. Entre os ativistas da reforma psiquiátrica é comum considerar as críticas como manifestação da velha psiquiatria conservadora, e frequentemente esta suposição é correta. Em muitas situações, estas críticas conservadoras surgem nos grandes meios de comunicação, enfatizando a necessidade de um controle mais intenso dos usuários de drogas, devido aos riscos que eles portariam. Mas, neste trabalho, seguiremos um caminho bem distinto tanto das estratégias épico-hagiográficas quanto das conservadoras.
Como Huertas García-Alejo (2001 ) destaca, as primeiras historiografias do campo psiquiátrico caracterizavam-se como triunfantes, ou seja, teriam o fim de “memorizar o seu fazer, conduzindo à celebração da medicina vigente, ao formar um esquema teleológico fundamentado na crença da evolução das ciências médicas” (Venancio & Cassilia, 2010, p. 26). Essas narrativas cederão, posteriormente, a abordagens mais críticas e problematizadoras, estranhamente retornando nos textos históricos sobre a reforma. Nossa estratégia neste trabalho será problematizar as políticas públicas atuais com uma abordagem crítica, tal como as que se iniciaram com os trabalhos de Foucault (2005), pensando a história como modo de estranhamento do presente (Foucault, 1995). Pretendemos colocar em evidência algumas das atuais políticas sobre drogas, retomando a alguns momentos de indefinição normativa nas práticas de internação, especialmente os rearranjos entre as figuras de ébrios, alcoolistas e vagabundos na virada para o século XX. A aproximação entre o conceito de alcoolismo e dependente químico é um tema que já foi abordado em outras investigações (Adiala, 2011; Valverde, 1998) e que nos apropriamos para lançar observações a respeito das continuidades entre as políticas de internação na Primeira República e as modalidades mais contemporâneas como, por exemplo, a internação compulsória de usuários de crack e a distinção entre usuário e traficante. De acordo com Adiala (2011), pode-se tomar 1921 como marco regulatório da aglutinação do problema do alcool sob a alcunha “drogas” a partir do Decreto nº 4.294 (1921).
Destarte, pretendemos analisar o processo de internação de ébrios a partir da contravenção de Embriaguez do Art. 396 do Código Penal de 1890. Compreende-se que as internações relativas ao uso do álcool durante a Primeira República, mais especificamente, entre 1899 e 1920, desenvolveram-se a partir de duas linhas paralelas, delimitando objetos diferenciados e circunscritos a práticas específicas: o ébrio vagabundo ( Martins, 2003 ; Santos, 2009) e o alcoolista louco (Adiala, 2011; Santos, 1995 ). Estas duas formas de conceber o uso do álcool foram estudadas a partir de fontes primárias das instituições policiais, psiquiátricas e jurídicas, tomando-se a polícia como analisador dos processos de internação ( Pontes, 2017 ).
Pretendemos demonstrar que, no período que vai até 1907, destacavam internações curtas para embriaguez, na fórmula da prisão no xadrez por uma noite ou pela punição prevista no código penal de 1890, que variava de 15 a 30 dias de prisão celular, de acordo com as circunstâncias atenuantes ou agravantes. A partir de 1908, a figura do ébrio se aproximou do alcoolista na percepção dos juízes, sobrepondo-se a figura do louco à do bêbado e trazendo como corolário para as práticas jurídicas os procedimentos equivalentes dessa tipificação, como a discussão de responsabilidade penal na própria contravenção. Por outro lado, na prática policial, os ébrios passaram a ser arranjados junto da figura do vadio, sendo absorvidos por esta tipificação penal. Tanto de um lado como de outro, a figura do ébrio independente de associações, passará, paulatinamente, a deixar de existir a partir de 1908. A questão da embriaguez passará a ser ou uma questão de vadiagem ou de alcoolismo, ambas dignas de internação, sendo um destinado à colônia penal, e o outro ao manicômio. Neste artigo, iremos discutir, a partir das diferentes visibilidades que os bêbados iam tomando, as mudanças nas práticas jurídicas de internação, buscando evidenciar os diferentes momentos acima mencionados.
Estratégias de pesquisa
Dividimos em dois esquemas a compreensão do problema da internação de ébrios: 1) o conjunto de práticas sociais (jurídicas, psiquiátricas e policiais) que pouco a pouco vão dando visibilidade ao uso do álcool (ébrios, alcoolistas e vagabundos) e exigem um encaminhamento; 2) as providências tomadas para dar conta dos problemas levantados pela questão da embriaguez, que podem ser descritos como o sequestro de bêbados pela polícia e seu encaminhamento para internação. Chamamos de internações jurídicas a prisão de bêbados e o consequente processo que sofriam pela contravenção de embriaguez. Delimitamos dois períodos de como aconteciam as internações jurídicas: de 1899 a 1907 e de 1908 a 1920. Esta periodização não encerra ou inicia as práticas de internação de bêbados, mas delimita um funcionamento particular destas práticas.
Os processos-crimes de embriaguez e vadiagem encontrados no Arquivo Nacional serviram como dados para correlacionar estas duas tipificações de contravenção. Para tanto, foram contabilizados o número de processos em diferentes pretorias (1899-1912) e pretorias criminais (1911-1930), cujo resultado pode ser encontrado em forma de gráficos no apêndice. De acordo com as instruções do Arquivo Nacional:
As pretorias foram criadas pelo decreto nº 1030, de 14/11/1890, com as atribuições anteriormente exercidas pelo juiz de paz, podendo julgar causas cíveis e criminais, dividas em vinte e uma circunscrições judiciárias (freguesias). O decreto nº 1978, de 25/02/1895 ... reduziu seu número para quinze, anexou várias freguesias na abrangência territorial de cada pretoria e manteve as atribuições fixadas em 1890. O decreto nº 9263, de 28/12/1911, separou o cível do crime e estabeleceu oito pretorias cíveis e oito criminais. ... Competia aos pretores do crime, entre outras atribuições: fazer corpo de delito; obrigar a assinar termo de bem viver e de segurança; lavrar auto de prisão em flagrante; conceder fiança; julgar as contravenções processadas pelas autoridades policiais; processar e julgar as infrações sanitárias, os crimes de injúrias verbais, ultraje ao pudor, dano, contra segurança do trabalho, furto e ofensas físicas; formar culpa nos crimes de competência do júri. As pretorias criminais foram extintas pelo decreto-lei nº 2035, de 27/02/1940, o qual criou quinze cargos de juízes de direito com exercício nas varas criminais...1
Percebemos, durante a pesquisa, que o Arquivo Nacional não dispõe de todos os documentos de todas as pretorias do período aqui analisado (1899-1920). Ainda assim, cabe observar que a atividade policial e jurídica não são representativas dos crimes que ocorriam na época, porém são bastantes representativos do ethos destas instituições, ou seja, traduzem sua racionalidade e operacionalidade, demonstrando o que se considerava como relevante para que se tornasse processo-crime, sendo, portanto, um testemunho da atividade policial e jurídica, o que justifica o uso dos documentos selecionados como fontes primárias.
Após contabilizados os totais de processos-crimes encontrados em diferentes pretorias, os dados foram organizados de acordo com as freguesias correspondentes de suas respectivas pretorias. Portanto, se para um determinado período pretorias de diferentes freguesias foram unificadas, trabalhamos com a unificação dos dados em quatro blocos2. Foram produzidos gráficos resultantes da contagem dos processos-crimes e se encontram no apêndice desta publicação.
Após contabilizados os processos-crime, alguns foram selecionados para analisar como eram produzidos estes documentos. Foram analisados ao todo 156 processos-crimes em sua íntegra. Destes, 69 eram somente de vadiagem e os restantes, 78, de embriaguez ou embriaguez e vadiagem. Os processos foram selecionados aleatoriamente ao longo dos anos de 1889 até 1920, concentrando-se a maior parte dos processos de embriaguez em 1904, 1907 e o período pós pico de 1907 quando inicia um declínio de processos por embriaguez até seu cessar completo: entre 1908 e 19123. Todos os processos de embriaguez entre 1908 e 1912 foram analisados. O ano de 1912, portanto, foi utilizado como marco de análise pelo fato de que os últimos dois processos de embriaguez acontecem exatamente neste ano. Quanto aos processos de vadiagem, foram analisados aleatoriamente diversos processos de diferentes anos e pretorias após 1912. Assim, foram selecionados cinco processos de vadiagem por ano, independente da pretoria. Todo o processo metodológico descrito obedeceu a uma lógica interna própria às fontes documentais e a investigação seguiu os caminhos que desabrochavam de cada análise. Ou seja, a pesquisa foi encontrando seu objeto e método no próprio ato de pesquisar.
Quando as fontes dos processos crimes foram referenciadas neste artigo, todos os nomes dos réus foram substituídos pela letra [K] em referência ao personagem do livro O processo de Franz Kafka. Entendemos esta substituição como uma forma de homenagear uma obra tão atual, na medida em que remete à problemáticas pertinentes ao presente trabalho, ao mesmo tempo em que permitia preservar a identidade dos autuados nos processos, ainda que, em termos normativos, tal procedimento ético não seja necessário.
Resultados
Ébrio habitual e criminologia
A caracterização do que significa um ébrio habitual em termos de práticas, saberes e instituições, a partir do recorte que esta pesquisa faz com relação a internação, foi feita a partir da discussão de como a embriaguez era considerada um problema no período analisado, vinculando os discursos jurídicos e policiais com a criminologia positiva. Em seguida, foi realizada a explanação das diversas etapas que vão desde aprisionamento até a condenação.
A embriaguez coibida é construída a partir de alguns critérios gerais que demarcam as possibilidades de sua descrição no testemunho policial nos processos crimes, são eles: habitual/reincidente, pública, e manifesta. O Art. 396 do Código Penal de 1890, delimita a tipificação da embriaguez nos seguintes termos: “Embrigar-se por hábito, ou apresentar-se em publico em estado de embriaguez manifesta”. A questão da reincidência de se encontrar embriagado, ou seja, ser ébrio habitual, é o principal fator elencado nos diversos processos-crime como motivo da prisão. Deve-se considerar que a embriaguez habitual é um tipo particular de percepção, exatamente por aquilo que já aparece no nome que era dado aos bêbados problemáticos da época, a habitualidade, pelo menos até 1907.
O que pretendemos propor é que o pano de fundo da construção dos saberes em torno do problema da embriaguez teve como alicerce a teoria criminológica em voga à época. Não queremos supor uma relação de causalidade, no sentido de que a criminologia positiva tornou possível a construção do próprio problema da embriaguez. Pelo contrário, a presença dos personagens ébrios e vadios já existiam desde o império ( Martins, 2003 ). O que propomos é que a criminologia pôde aprofundar as bases de discriminação da diferença se assentando na percepção sobre a população geral como uma massa de indigentes e povo atrasado que precisavam ser civilizados.
Conforme apontam Alvarez, Salla, e Souza (2003), a criminologia será apropriada pelo discurso jurídico e policial durante a Primeira República, e os intelectuais e funcionários públicos, em grande parte, passam a admitir como de seu interesse uma ciência que ao mesmo tempo solidifica as categoriais sociais com noções explicativas que ensejam em políticas de normatização de indivíduos. Conforme o chefe de polícia afirma:
É dessa massa funesta e corrompida, formada pelos vadios, bêbedos, ladrões, mendigos e desordeiros, que surgem mais tarde os grandes criminosos contra a propriedade e contra a vida. A policia não pode abandonar de vista semelhante gente, pois, se o fizesse, renegaria a sua missão preventiva (Ministério da Justiça e Negocios Interiores, 1904, p. 52).
O ébrio, o vadio, as prostitutas, dentre outros, aparecerão como gérmen dos criminosos, como uma relação de progressividade causal para um delinquente mais perigoso do ponto de vista social (assassinos e ladrões) e que fundamentarão a atuação da polícia no sentido de prevenir que essa massa de criminosos potenciais pudesse se efetivar.
A criminologia dava uma taxonomia científica para as classificações dos desvios para importar, aprimorar e utilizar teorias científicas para entender e se debruçar sobre os problemas locais. Marcando uma transformação de paradigmas, a Criminologia Positiva fez uma transição de objeto, deslocando e criticando o foco da criminologia clássica no estudo do crime para dar luz ao problema do criminoso (Alvarez, Salla, & Souza, 2003). Desta forma, a criminologia passou a focar na relação entre individualidade criminosa e crime, diferente das formulações clássicas que teciam considerações sobre crime e pena. Conforme Castro (1913), “a escola anthropologica pune o individuo segundo as necessidades da defesa social posta em perigo pela maior ou menor temibilidade do delinquente” (p. 22).
A embriaguez era considerada um problema de consequências diversas seja na promoção da loucura ou da delinquência, ou seja, o uso do álcool era abordado nas etiologias da loucura ou da delinquência, como pode ser observado no trabalho de Castro (1913):
É um nos flagellos mais terriveis deste seculo, um dos que mais tristemente preoccupam a attenção do sociologo. ... Á proporção que se alastra o uso do alcool, vai tambem augmentando o numero dos suicídios, das loucuras, da epilepsia, da criminalidade. E o alcool é um do factores mais energicos de tudo isto. ... A degenerescencia mental em suas multiplas variações prendem-se grandemente ao excesso do alcool. ... E o que ha de triste no alcoolismo é que seu effeito destruidor não se limita ao individuo, propaga-se á descendencia, variando desde o gosto pronunciado pelos licôres fortes até a degenerescencia mais completa do ser humano. ... Triste e miseravel liberdade, que permitte ao homem degradar-se, embrutecendo sua descendencia, legando ao mundo degenerados physicos e moraes, sêres condemnados ás penitenciarias e aos asylos (pp. 320-325).
O uso do álcool era correlacionado à prática de outros delitos. Segundo as teorias deste período, não só degradava o homem que fazia seu uso, mas inabilitava os seus descendentes para o convívio social, cada vez mais, a cada geração. Era, portanto, colocado como um grande formador de patologias e delinquências. Em ofício do Ministério da Justiça observa-se esta mesma tendência:
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Recommendo-vos que peçais com urgência aos delegados das diversas circunscrpções urbanas e suburbanas informem com a maior minucia que lhes fôr possível, sobre a extensão dos crimes e delictos devidos ao alcoolismo. ... que mencionem o numero de casas de bebidas, botequins, hotéis, casas de parto, cafés, kiosques, etc que ha nas respectivas circunscripções e até que ponto ellas concorrem para fornecer o contigente habitual de perturbação da ordem e de criminosos. Cumpre igualmente que forneçam a estatística dos presos que são recolhidos em estado de embriaguez ou por esse único delicto ou por qualquer outro ( Ministerio da Justiça e Negocios Interiores, 6C182, 1906).
O ofício do ministro da Justiça é revelador do grau de impacto das teorias criminológicas na administração policial, onde o que subjaz deste pensamento é a produção de um saber científico das ilegalidades relacionadas à ingerência de bebidas alcoólicas. Neste sentido, o papel que a criminologia positiva teve foi uma teoria geral da doença e do crime que fortalecia a justificativa às práticas de internação e as revestiam de uma sustentação científica.
Justaposição de ebrios e vadios (1899-1907)
Ao observar os gráficos do Apêndice, observa-se uma correlação entre vadiagem e embriaguez a partir de uma justaposição de percepção social. No campo das ilegalidades, a desordem, a vadiagem, a prostituição, dentro outros fatores, são visibilidades com fronteiras limítrofes que podem, dependendo da ocasião, sobreporem umas sobre às outras. Porém, dentro de todas estas correlações entre embriaguez e outras percepções, a que se torna mais evidente é a relação com a vadiagem. Um exemplo de justaposição destas percepções aparece na descrição do motivo de sua prisão em ofício policial: “vagabundo sem domicilio que em completo estado de embriaguez, em uma taverna, provocava com palavras obscenas os transeuntes [desordem]” ( Ministerio da Justiça e Negocios Interiores, 6C179).
Os bêbados e as bêbadas, na Primeira República, eram mais problemáticos quando, também, vagabundos. Ainda segundo os gráficos do apêndice, percebe-se que nas diferentes freguesias a distribuição de processos por embriaguez e vadiagem obedecem a um mesmo padrão, de aumento e de diminuição até desaparecerem os casos de embriaguez no final da primeira década do século XX. Este dado corrobora a ideia de uma aproximação das duas tipificações e deixa bastante evidente que a atuação jurídica e policial da época aproximavam a percepção de embriaguez e vadiagem, pertencendo os dois tipos penais ao mesmo espectro de visibilidades, uma espécie de justaposição. Consideramos justaposição esta relação de proximidade de taxonomias, onde um mesmo indivíduo ou diferentes grupos transitam de uma a outra, porém mantendo-se as distinções práticas entre elas, ou seja, um bêbado tem regimes de discurso e práticas de internação diferentes do vagabundo. Para apontar essa proximidade taxonômica, podemos recorrer ao chefe de polícia em 1904, onde afirma que: “o bebedo habitual é, ipso facto, um vadio que deixa de exercitar profissão, officio ou qualquer mister em que ganhe a vida” (Ministério da Justiça e Negocios Interiores, 1904, p. 53).
Araújo (2004) faz a diferenciação entre modos de embriaguez, de forma que a embriaguez que irá incomodar, aquela que precisa ser coibida, será exatamente a que se aproxima da vadiagem. Em sua transcrição de um acordão do Tribunal da Relação de Fortaleza (Ceará) de 1895, esta relação entre ambos os casos, do ponto de vista da jurisprudência, fica bastante evidente na recomendação de reconduzir o bêbado para casa, processando-o somente se for vagabundo:
O cód. pen. Vigente não nulifícou pelo seu art. 396 a attribuição, commettida anteriormente ás autoridades policiaes, de pôr em custodia os bebedos, durante a bebedice. Não sendo o bebedo vagabundo, residindo no próprio lugar em que foi preso e não sendo tal a embriaguez que exija a sua detenção, é mais consentaneo com o respeito devido á liberdade do cidadão, e para tirar qualquer pretexto de violência, que seja elle conduzido para sua casa, em vez de ser recolhido à cadeia (Araújo, 2004, p. 390)
É preciso salientar a importância dada à questão domiciliar na conceituação da embriaguez e da vadiagem encarceráveis como elemento chave que aproxima o bêbado que deve ser recolhido para a cadeia daquele que deve ser levado para casa. Aviltando a pobreza, o que o código penal faz é produzir um programa de higiene pública retirando visibilidades consideradas desviantes de circulação, sendo que o elemento da pobreza, objetivado na ausência de domicílio, será o principal fator, mas não único, para delimitar uma subjetividade perigosa.
A aproximação entre embriaguez e vadiagem, nos processos crimes, pode ser observada em diferentes momentos. Em alguns casos, a embriaguez aparecia combinada com o artigo 399 do Código Penal, a Vadiagem, sendo tal relação extremamente comum. Para além da combinação processual, podemos destacar aqui dois exemplos. No primeiros caso, a defesa do acusado aponta para o fato de que ele não é vagabundo.
[Anexo 1:] [Cartão da Padaria Central Do Andarahy - Cartão Profissional de Ignácio Teixeira da Cunha].
[Atestado 1:] Ignácio Teixeira da Cunha, ... attesta em beneficio da verdade que Manoel Monteiro da Rocha, é homem trabalhador, de bons costumes, morigerado e honesto e nunca se deu ao vicio da embriaguez. Attesta ainda que o mesmo é empregado no estabelecimento comercial do Senhor Lourenço Pinto Bonifácio, onde sempre deu [senão contas de si?].
[Anexo 2:] [Cartão da Casa S. Lourenço - Cartão Profissional de Lourenço Pinto Bonifácio].
[Atestado 2:] Lourenço Pinto Bonifácio, ... atesta ... que Manoel Monteiro da Rocha, é homem de bons costumes, trabalhador, morigerado e honrado e nunca se deu ao vicio da embriaguez; sendo empregado em meu estabellecimento comercial, onde sempre deu boas contas de si.
[Defesa:] ... Em obediência ao Art. 396 do Cod. Penal mais do que a qualquer outro principio, impõe-se a nullidade do presente processo: Clarissima, a idéa do legislador na redação do referido artigo de citado Cod, comprehende o habito de embriagar-se alguem tornando-se inútil para executar qualquer trabalho. ... vehemente e exhuberante é a prova em contrario – os dois atestados, um dos quais firmados pelo patrão do accusado e o outro por outro negociante, ambos havidos por valiosa pela criteriosa autoridade do 16o distrcto policial, que a vista d’elles deu ao accusado a preciosa liberdade para que solto se defendesse das acusações que lhes eram imputadas...
A defesa monta sua estratégia tentando distanciar o réu da figura da vadiagem para absolvê-lo da embriaguez, bem sucedida perante o juiz, que, em sua sentença, afirma: “Attendendo a que a accuzação que sofre o accuzado não [rendeu?] a convicção de ser o mesmo passivo de uma justa applicação de pena; Attendendo a que a responsabilidade criminosa do accuzado não foi afirmada. Julgo improcedente a accuzação [...]” ( Ministerio da Justiça e Negocios Interiores, T8.2356).
O segundo caso estabelece a relação pela não menção da embriaguez na sentença do juiz, mesmo sendo um processo qualificado no Artigo 396 do Código Penal, e o juiz absolve o réu por este não ser vagabundo:
[Sentença:] Vistos estes autos e atendendo a que os depoimentos das testemunhas de accuzação, não induzem a convicção de que o accusado seja vagabundo, ou seja, que não tenha profissão honesta ou qualquer mister em que ganhe a vida licitamente, nem domicilio certo em que habite, julgo improcedente a accusação e absolvo o réo [K] da contravenção que lhe foi intentada ( Ministerio da Justiça e Negocios Interiores, T8.2560)
Sobreposição de ébrios e vadios (1907-1920)
Observando os gráficos do apêndice como ponto de análise, pode-se perceber uma ausência quase que total de casos de processos por embriaguez a partir de 1910 em todas as freguesias. Neste sentido, cabe explicar o que está se chamando de segundo momento das internações dos bêbados no período analisado. Para explicar este desaparecimento, recorreremos a uma série de fatores que concorreram na mudança da lógica da atuação policial e jurídica produzindo diversos efeitos práticos no modelo de internação de bêbados.
A ausência dos processos de embriaguez não necessariamente indica o encerramento deste tipo de internação de bêbados. Porém, Bretas (1995 ), consultando outras fontes, chega à mesma conclusão. Além disso, os diversos mapas de presos da Casa de Detenção encontrados no período posterior a 1912 no Arquivo Nacional e os dados da Casa de Detenção do Arquivo Estadual do Rio de Janeiro corroboram que a embriaguez deixou de ser processada a partir do Art. 396 do Código Penal de 1890 (Casa de Detenção, Md-Ho-006, 1913; Ministério da Justiça e Negocios Interiores, 6c501, 1914; Ij6-575, 1915).
Até 1907, imperaram as internações curtas para a embriaguez na Casa de Correção e mesmo após a construção das colônias marítimas (a Colônia Correcional de Dois Rios em Ilha Grande no caso do Rio de Janeiro) a embriaguez não se encaixava em tal punição.
Embora a Colônia Correcional de Dois Rios tenha começado a operar já na década de 90 do século XIX, suas atividades foram interrompidas em 1896 e só foram retomadas em 1902. A parca repressão às contravenções se dava pela inexistência de uma instituição especializada para onde enviar os presos, conforme afirmava relatório do chefe de polícia 1903-1904. Assim, este segundo momento da Colônia Correcional de Ilha Grande, pode ser encarado como decisivo para o funcionamento do sequestro policial. A afirmação do chefe de polícia parece ser corroborada pelos dados coletados nos processos crimes, na medida em que aumentam o número de processos a partir de 1903 (apêndice).
Em contrapartida às contravenções de embriaguez, os processos de vadiagem, principalmente dos reincidentes, rendiam internações mais longas, que poderiam durar de um a três anos, conforme pode ser observado no Art. 400 do Código Penal. O Decreto n. 947, de 29 de dezembro de 1902, que autorizava a criação da colônia dizia o seguinte:
IV. A crear uma ou mais colonias correccionaes para rehabilitação, pelo trabalho e instrucção, dos mendigos validos, vagabundos ou vadios, capoeiras e menores viciosos que forem encontrados e como taes julgados no Districto Federal, comprehendidos nessas classes os definidos no Codigo Penal e no decreto n. 145, de 12 de julho de 1892.
DECRETO Nº 145, DE 11 DE JULHO DE 1893
Art. 2º São comprehendidos nessas classes:
§ 1º Os individuos de qualquer sexo e qualquer idade que, não estando sujeitos ao poder paterno ou sob a direcção de tutores ou curadores, sem meios de subsistencia, por fortuna propria, ou profissão, arte, officio, occupação legal e honesta em que ganhem a vida, vagarem pela cidade na ociosidade.
§ 2º Os que, por habito, andarem armados, em correrias, provocando tumultos e incutindo terror, quer aproveitando o movimento da população em festas e solemnidades publicas, quer em manifestações de regosijo e reuniões populares ou outras quaesquer circumstancias.
§ 3º Os que, tendo quebrado os termos de bem-viver em que se hajam obrigado a trabalhar, manifestarem intenção de viver no ocio, ou exercendo industria illicita, immoral ou vedada pelas leis.
Pode-se perceber que, de acordo com as classes dos passíveis de internação, o ébrio não figurava dentre os personagens dignos desta medida nas primeiras legislações. Observando-se os dados obtidos nos processos crimes, somente quando qualificados como vagabundos se produziam tais internações, conforme ocorria com bastante frequência nos processos com a combinação dos artigos 396 e 399 do Código Penal. Nas sentenças, era citado o destino que deveriam ter os condenados, sendo que somente os vadios eram enviados às colônias:
[Sentença:] ... Julgo procedente a accusação e condemno o reo [K] no grau médio dos arts. 396 e 399 do Código Penal a vinte e dous dias de prisão na Casa de Correcção e vinte e dous e meio de residência na Colonia Correccional de Dous Rios (Ministério da Justiça e Negocios Interiores, Oi.01471, 1907).
Observe-se que para o artigo 396 do Código Penal a prisão a que se destinou o condenado foi a Casa de Correção, enquanto para o artigo 399, a pena foi a Colônia.
A embriaguez, sob a alcunha de ébrios habituais, aparecerá no regulamento da colônia já em 1903 no decreto 4.753 de 28 de janeiro de 1903:
Art. 1º A colonia dos Dous Rios, destinada á rehabilitação, pelo trabalho e educação, dos mendigos validos, do sexo masculino, vagabundos ou vadios, capoeiras, ebrios habituaes, jogadores, ladrões, dos que praticarem o lenocinio e dos menores viciosos, que forem encontrados e como taes julgados no Districto Federal, comprehendidos nessas classes os definidos no Codigo Penal e no decreto n. 145, de 12 de julho de 1892.
Ainda assim, acreditamos que a embriaguez só chegava na colônia ou como subtipo da vadiagem (um indivíduo processado por vadiagem reclassificado como ébrio dentro da colônia) ou como associada à vadiagem (pelas combinação da tipificação no processo, acusado nos artigos 396 e 399). As internações por embriaguez também não possuíam uma tramitação facilitada, como o jogo e a vadiagem, conforme prerrogativa da Lei Alfredo Pinto (Lei nº 628, 1899). A possível presença dos ébrios nos regulamentos da colônia parece favorecer a relação entre embriaguez e vadiagem, sendo um dos primeiros momentos de sobreposição das visibilidades encontrados nas fontes. Até o momento, a relação era de aproximação e justaposição, sem sobrepor a figura do vadio à do ébrio. Argumentaremos, a seguir, os procedimentos que consideramos que permitiram alocar o ébrio como subtipo da vadiagem.
Pode-se constatar a partir do Boletim Policial (1907) uma tentativa de consignar na legislação uma equiparação do modelo processual das outras contravenções com a vadiagem, que transcorria de forma mais eficaz. Em discurso transcrito no Boletim Policial (1907), proferido no Congresso Nacional, o jurista e deputado Mello Mattos argumentou pela modificação da legislação do modelo processual das contravenções:
... a punição das contravenções pede um processo e um julgamento rápido e fácil, de acordo com a natureza de taes infrações e com a pena que lhes é imposta. ... Nós temos confiado ás autoridades policiaes o processos de certas contravenções, de accordo com a lei n.628 [Lei Alfredo Pinto]. Parece-me que poderiamos ampliar esta missão policial, a todas as contravenções, fazendo os delegados de policia preparadores do julgamento (Polícia do Districto Federal, Gabinete de Identificação e de Estatística, n.3, p.14-15, 1907-1908).
Esta tentativa foi frustrada, não sendo aprovada a Lei. Entretanto, o fato de a polícia dar visibilidade, através da publicação do discurso em sua íntegra, em mais de um volume do periódico Boletim Policial, revela a importância dada ao projeto de facilitar os processos com a formação de culpa nas delegacias, sendo encaminhadas para o pretor somente para julgamento. Esta dificuldade processual está sendo aqui elencada para produzir a seguinte hipótese: além de curtas as prisões por embriaguez, também demandavam maior esforço da polícia para produzir condenações. As dificuldades processuais podem ter corroborado no abandono da embriaguez como tipo penal.
Uma segunda hipótese para o abandono da embriaguez como tipo penal é sua aproximação da loucura, ou seja, a paulatina incorporação no discurso e práticas jurídicas e policiais da embriaguez como loucura a partir da figura do alcoolista.
Encontramos, dentro da mesma racionalidade de equiparação do bêbado ao louco, três modalidades diferentes de inserção do discurso médico, modificando a prática policial e jurídica, nos processos-crimes que ocorreram desde 1907: a introdução do instrumento da curatela no depoimento do acusado, a equiparação do ébrio ao louco na sentença e a introdução de laudos médicos para reforçar a acusação de que o acusado é um alcoolista.
Já nos processos crime de 1907, vê-se aparecer, no discurso dos juízes, a equiparação do ébrio ao louco, conforme exemplo a seguir:
Consta dos autos que o réo [K] foi preso na rua ... por ébrio, isto no dia 24 de nov. Mas que não foi dado causador do réo ébrio em manifesto estado de embriaguez quando o ébrio é equiparado aos desavisados. Julgo nullo o processo e quando seja o reo posto em liberdade se porventura estiver preso ( Ministerio da Justiça e Negocios Interiores, 0R.5958, 1907; grifo nosso).
Sem termos técnicos, o que o juiz informa nesta sentença é uma aproximação da racionalidade do saber médico. Em muitos casos, o juiz solicitava a presença de um curador, instrumento jurídico destinado aos loucos para atribuir a outrem a responsabilidade jurídica do acusado para o depoimento ( Ministerio da Justiça e Negocios Interiores, 0R.5186, 1907; 0R.5642, 1907; 0R.6051, 1907; 7G.1136, 1908; MW.2054, 1908). Esta prática pode ser considerada como uma segunda modalidade de entrada do discurso médico nos processos de embriaguez.
Ainda nesta linha, a partir de 1908 no 10o distrito policial, encontra-se, em alguns processos, além da designação de um curador, a presença de um laudo médico4 junto ao processo, por solicitação do delegado: “Dê se ao accusado [K] nota de culpa pela contravenção definida no Art. 396 do Cod. Penal e seja o mesmo submetido a exame de sanidade e intimado para apresentar sua defesa no prazo de 24 horas ...” ( Ministerio da Justiça e Negocios Interiores, 7C.1404, 1908).
[Laudo:] [K], pardo, brasileiro, de quarenta e tres annos, casado, servente, morador na rua Garibaldi numero cinco; é de constituiçãoo regular. Refere que fora preso no dia vinte e cinco do corrente na rua Bonfim por se achar alcoolisado; que costuma beber cerveja e paraty, embriagando-se algumas vezes; examinando-o notaram que sua face está ademaciada (bouffie) que a extremidade nazal é de côr rubra e que sua lingua está saburrosa, tendo tremor fibrilar, tanto na lingua como nas extremidades digitaes, ambas as suas pernas estão edemaciadas sendo mais forte a edemacia da perna esquerda. O paciente presentemente não está embriagado, mais é fora de duvida que habitualmente se dá ao vicio da embriaguez ( Ministerio da Justiça e Negocios Interiores, 7c.1404, 1908).
Apesar de o discurso médico operar neste último processo como facilitador da acusação, a racionalidade é a mesma e o procedimento de internação jurídica segue dando entrada às concepções médicas. Os laudos serviam para facilitar a acusação de embriaguez, de forma distinta à inserção do curador no processo, demonstrando que a entrada do discurso médico se deu de forma errática.
O que fica aparente nos processos alijados anteriormente é que apesar do saber médico adentrar nos documentos, ele se faz por diferentes práticas, ora produzindo questões para a anulação do processo, ora servindo de reforçador para a acusação. A ausência de padrão aponta para uma aceitação maior do paradigma médico de tratamento dos alcoolistas. Além disso, a forma paradoxal que esta racionalidade é produzida na ausência de uma regulamentação ensejará práticas difusas, ficando sob o escrutínio dos juízes e policiais o modo como este paradigma vai funcionar. Caso esta hipótese esteja correta, explicaria o fato de que a embriaguez desaparece como contravenção. Se a compreensão da embriaguez como loucura passou a se tornar privilegiada e processar bêbados era obstaculizado por este fato, o desaparecimento de processos por embriaguez seria um dos poucos rastros documentais deixados. Ou seja, a dificuldade de condenação em torno das práticas de embriaguez levara ao abandono dela enquanto artigo do código penal.
Pode-se pensar que a luta contra os ébrios passa a tomar uma nova forma a partir de 1907, sendo priorizado hospitalização em detrimento de outras opções como a prisão. Porém, isto não é de todo verdade. Os bêbados por muito tempo habitaram as instituições manicomiais e segundo nossa argumentação, mesmo que a medicina tenha passado a ser o saber privilegiado para agir e discursar sobre os bêbados, não necessariamente foram encerradas outras práticas de encarceramento. A partir de 1907, o modus operandi da polícia passa a modificar, direcionando seu foco de atuação com relação à incriminação de bêbados. A internação de ébrios não deixa de existir, mas passa a mudar sua modalidade.
Propomos uma mirada para o Art. 64 do Decreto n° 6994, de 19 de junho de 1908, dando novo regulamento à Colônia Correcional de Dois Rios, para análisar estas transições a partir do ano de 1907. Nele, há uma partição de grupos a serem divididos os presos que dão entrada na colônia, subdividindo os presos a partir do critério alcoolismo.
A entrada do discurso médico no regulamento da Colônia Correcional de Dois Rios revela um outro tipo de sobreposição do alcoolismo que não somente à do louco. Considerando que as práticas de internação na colônia se direcionavam, em grande parte, aos vadios, nossa hipótese é de que este regulamento muito mais do que uma virada de paradigma do ébrio para o louco, faz uma subdivisão dos vadios, encaixando os alcoolistas neles e fazendo desaparecer o antigo ébrio. Para reforçar este raciocínio podemos apontar que a ausência de processos por embriaguez se dá pela incorporação completa deles nos processos de vadiagem a partir de 1912.
Até 1907, a relação entre vadios e ébrios se dava por justaposição, aproximando as visibilidades com a combinação dos artigos 396 e 399 nos processos crimes, através das defesas dos acusados clamando-se “não vagabundo” ou nas sentenças dos juízes afirmando não ser o ébrio vagabundo. O que se opera a partir daí é uma total incorporação do ébrio ao vadio. Dos 70 processos crimes de vadiagem analisados no período de 1912 a 1920, cerca de um terço (21) fazem alguma menção ao uso de bebidas alcóolicas sob a fórmula de uma presença constante do vagabundo em botequins ou embriagando-se, conforme pode ser observado a seguir:
[Policial que prendeu] disse que hoje, as treze horas prendeu … e conduziu a esta delegacia o accusado presente [K], a quem o depoente conhece há muito tempo e pode afirmar que o mesmo não tem meios de subsistencia por fortuna propria, que não tem emprego nem exerce profissão; Que conhece o acusado como vadio, pois o mesmo é diariamente encontrado vagando pelas ruas e praças publicas desta cidade, ou fazendo ponto dentro de botequins e tendinhas, onde costuma embriagar-se e fazer escândalos; e que o acusado já tem sido preso varias vezes, sem que no entanto procure qualquer occupação quando é posto em liberdade.
[1a tesetemunha] disse que … viu quando o agente que depoz em primeiro logar prendeu o accusado presente que agora sabe chamar-se [K] e o conduziu a esta delegacia por estar o mesmo perambulando naquella rua; que o depoente conhece o accusado de vista, ha muito tempo e sempre o vê na ociosidade, vagando pelas ruas ou estacionando dentro dos botequins donde só sae quando se acha embriagado; que o accusado não tem emprego, profissão, arte ou qualquer ocupação que possa provar ter vida legal e honesta; estando sempre preso, por ser um individuo sem proveito para qualquer serviço e que o accusado é vadio muito conhecido.
[2a testemunha] disse que conhece ha muito tempo o accusado presente [K] e viu quando hoje as treze horas o agente que depoz em primeiro logar, prendeu o accusado e conduziu a esta delegacia, por estar o mesmo vagando pela rua…; Que é habito do accusado andar perambulando pelas ruas sem destino certo e que o mesmo é vadio muito conhecido, não tem ocupação, não exerce profissão, nem tem emprego, assim como não tem meios de subsistencia por fortuna propria que o possa garantir a vida ociosa que tem, sem procurar emprego ( Ministerio da Justiça e Negocios Interiores, 71.0418, 1919).
Portanto, o desaparecimento da embriaguez como tipo penal se dá tanto pela incorporação do discurso médico nas práticas jurídicas estabilizando a subtipificação do bêbado como louco, como pela inclusão do alcoolista como uma subclasse do vagabundo. Assim, delimita-se uma nova configuração do dispositivo de internação, na medida em que internações de loucos alcoolistas em hospícios e vadios ébrios em colônias continuará a ocorrer por toda a década de 10 do século XX, tendo a polícia a autonomia de designação dos indivíduos para as tipificação e consequentes encaminhamentos (internação manicomial ou prisional).
Conclusão
Conforme os dados demonstraram, para o período analisado, havia três destinos possíveis para a embriaguez referente ao processo de internação: a internação curta do Art. 396 e as internações longas a partir do Art. 399 para os ébrios habituais e, finalmente, a internação manicomial para os alcoolistas.
Adventamos como hipótese que as políticas em torno dos pares alcoolistas-manicômios/vadios-prisão parece ser a gênese de um longo período em que a questão das drogas será tratada de forma ambígua e que perdura até o presente sob novas formulações. Para que esta consideração não se torne um atalho análogo, aponta-se a necessidade de novas pesquisas que conduzam esta linha de investigação e demonstrem a sua processualidade e particularidades. Não obstante, algumas argumentações nessa direção podem ser colocadas.
Considerando que as drogas podem ser abordadas tanto pelo viés da Segurança Pública como da Saúde Pública, as concepções e práticas de internação de usuários em prisão e em manicômio parece perdurar, de acordo com a proveniência social do acusado, fato tornado ainda mais evidente pela seletividade do sistema penal ( Machado, 2010 ). Os usuários até hoje possuem qualificações que ricocheteiam dentre as visibilidades de vagabundos/criminosos ou loucos/pacientes. De acordo com a circunstância, destina-se os indivíduos para um aparato jurídico-policial (penal) ou ao tratamento voluntário e em liberdade pela via da saúde pública (loucos/pacientes). Observa-se também o nascimento recente de uma politica policial-manicomial-religiosa possibilitadas pelo dispositivo da internação compulsória.
Com a parcial descriminalização do uso de drogas proposta pela Lei nº 11.343 (2006), a vinculação do uso de drogas com o tráfico é tornada visível a partir de decisões judiciais, quando portadores de pequenas quantidades passam a constituir 60% dos condenados por tráfico, tendo sido presos sozinhos e desarmados e recebendo severas penas privativas de liberdade (Boiteux et al., 2009). Mantendo-se, assim, a criminalização do uso e a internação via sistema penal.
A moral do trabalho e sua negativa delimitada no uso de drogas, sendo o usuário considerado vagabundo, parecem ser imagens ainda contemporâneas. Uma outra estranha continuidade pode ser vista pelo avesso na nossa atualidade onde a internação não é mais a regra crucial em Saúde Mental, mas ao contrário, tornou-se tudo a evitar num quadro de reforma psiquiátrica. Conforme a Lei 10.216 (2001) é direito da pessoa portadora de transtorno mental “ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis” (Artigo 2, paragrafo único, VIII). Sendo assim, esta legislação limita as possibilidades de internação para casos excepcionais. Justamente onde a liberdade se tornou a regra, abriu-se uma brecha em nome de uma guerra às drogas. Para realizar as internações e com anuência de instituições federais, estaduais e municipais, formas de intervenção paramédicas têm sido convocadas para ocupar este espaço de política assistencial: as Comunidades terapêuticas. Apesar de ter o mesmo nome do movimento ocorrido na Grã-Bretanha em meados do século passado as atuais Comunidades Terapêuticas no Brasil referem-se mais a iniciativas de grupos religiosos, via de regra pentecostais acolhidos pelo governo como parceiros na luta contra o crack, destino de muitos processos de internação compulsória (Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, 2017)
Num mundo pós-asilar, podemos estar reassistindo uma sobreposição da loucura à vagabundagem na figura do usuário de crack, em geral pobre e ocioso, vinculando a dependência química a um dispositivo de encarceramento de natureza híbrida. Sem qualquer presunção de uso moral da história como repetição ou farsa, entendemos que a problematização sobre os modos com que as categorias sociais são demarcadas e seus encaminhamentos são delinados nos é suficiente nesta conclusão. É oportuno, no entanto, concluir com uma objeção manifestada, em 1920, por alguns poucos deputados frente à Lei de criminalização de drogas no Brasil antes de sua aprovação: “… taes medidas, por sua propria natureza, são inexequiveis e a sua ímpraticabilidade virtual manifestar-se-ha, infelizmente, recahindo apenas, em casos isolados, sobre os mais humildes e desprotegidos” (Congresso Nacional, 1920, p. 868)
Estratégias de pesquisa
Resultados
Ébrio habitual e criminologia
Justaposição de ebrios e vadios (1899-1907)
Sobreposição de ébrios e vadios (1907-1920)
Conclusão