December 2017 in Revista de psicología (Santiago)
Recepção e Circulação da Psicologia Humanista de Carl Rogers no Brasil
Resumo:
Segundo uma perspectiva historiográfica, objetivamos (re)organizar, revisitar e refletir a recepção e circulação da psicologia humanista de Carl Rogers no Brasil. Inicialmente, apresentamos os conceitos de recepção e circulação e suas implicações para uma história da psicologia em contexto. Posteriormente, revisamos quatro momentos históricos de recepção e circulação de ideias rogerianas no Brasil, a saber, pré-história (1945-1976), fertilização (1977-1986), declínio (1987-1989) e ascensão / renascimento (1990 em diante). Em seguida, analisamos as traduções das obras de Rogers para o português brasileiro, especificando como elas contribuíram para essa recepção e circulação, nas décadas de 1970-2010. Refletimos que, atualmente, no Brasil, há poucos livros de Rogers em edição e existem algumas obras metodológicas, autobiográficas e clínicas que não foram traduzidas. Decorrem disso uma dificuldade no acesso total dos planos de pesquisa e de fundamentação teórica, clínica e educacional de Rogers, além do conhecimento parcial da vida e da obra desse autor, conforme as suas narrativas. Argumentamos, finalmente, que esses aspectos contribuíram para o desenvolvimento de uma abordagem centrada na pessoa com especificidades locais, sobretudo, fenomenológico-existenciais.
Introdução
O campo da história da psicologia tem se desenvolvido como uma medida contra o esquecimento (Araújo, 2012) a partir de suas historiografias locais que apontam para uma perspectiva policêntrica de histórias regionais e contextuais (Barrera, 2016; Brock, 2014; Pickren & Rutherford, 2010, 2012). Assim, elaboram-se narrativas que: evitam o esquecimento; ampliam o conhecimento sobre o desenvolvimento da psicologia em diversas regiões do mundo; e (re)organizam algumas operações sociais daqueles que ajudaram a compor um conhecimento psicológico local. Eis a proposta deste estudo que objetiva (re)organizar, revisitar e refletir a recepção e circulação da psicologia humanista de Carl Rogers no Brasil, conforme uma perspectiva historiográfica que investiga: os momentos do desenvolvimento da abordagem centrada na pessoa (ACP) nesse País, nos anos de 1940-1990; as traduções das obras rogerianas para o português brasileiro, nas décadas de 1970-2000.
Os vocábulos recepção e circulação inserem-se em um modo de trabalhar pesquisas em história da psicologia. Ambos são entendidos como um recurso conceitual que ajuda a entender as especificidades de como determinada psicologia migra de um lugar para outro, desencadeando uma apropriação que distingue um desenvolvimento local (Castelo-Branco, Rota-Jr, Miranda, & Cirino, 2016). Entendemos que toda psicologia pode se manifestar como modalidade de serviço, espaço de produção de conhecimento, teoria, técnica, instrumento ou conceito. Consideramos, com efeito, que a psicologia que ora nos interessa é uma abordagem psicológica, a saber, a psicologia humanista de Rogers.
O termo recepção, no significado de emprego em história da psicologia, refere à migração de uma psicologia que ocorre mediante assimilações passivas e apropriações ativas de suas ideias, ensejando novas modalidades de entendimento e prática sobre ela. Decorre, pois, uma história local que não é mera cópia do que aconteceu e difundiu-se daquela psicologia em seu contexto originário, mas é outro horizonte de contendas relacionadas ao contexto sociocultural que o recebe e o atualiza conforme novas teorias e práticas (Castelo-Branco, Rota-Jr, et al., 2016). Entende-se, pois, que a recepção de ideias psicológicas implica em estudar a história de uma corrente psicológica contemporânea e investigar as formas como esta foi legitimada em diversos países, adentrando as condições que possibilitaram a disseminação do seu conhecimento em cada país (Cirino, Miranda, & Cruz, 2012).
Subjacente à recepção de um conhecimento psicológico, acontece outro fenômeno, que remete aos mecanismos que possibilitam tais ideias circularem em um dado contexto. A palavra circulação implica um movimento ordenado, ou possível de ordenação, de um conjunto de conhecimentos sobre uma psicologia, os quais se estabelecem em um dado espaço-tempo, contando com certos agentes, eventos e operações sociais que possibilitam o seu fluxo e a propagação de um pensamento (Castelo-Branco, Rota-Jr, et al., 2016). No quesito da circulação das ideias psicológicas, chama-se atenção para a análise de diversas operações sociais que proporcionam a circulação de um conhecimento e a propagação de um pensamento, como, por exemplo, a difusão de um conhecimento psicológico por uma comunidade científica que cria a demanda pelas traduções dos seus expoentes e organiza a difusão de suas ideias por meio de publicações.
O estudo da recepção e circulação de uma psicologia, em um plano hipotético, explora o contexto científico-cultural, social e institucional de um país receptor, no caso o Brasil, para examinar como este recebeu um determinado conhecimento psicológico e refletir o modo como esse conhecimento circulou nele, apontando suas diferenças e especificidades em relação aos EUA. Com efeito, ponderamos que o emprego dessas noções auxilia a investigação de como a psicologia humanista de Rogers é recebida no Brasil e é apropriada pelos psicólogos nacionais. Existem alguns estudos (Frota, 2012; Moreira, 2010, 2013) argumentando que a ACP brasileira está inserida em um movimento pós-Rogers que desenvolve essa vertente humanista conforme outras perspectivas que não necessariamente dão continuidade a ela, sobretudo norteadas por uma orientação fenomenológico-existencial. A despeito dessa especificidade, há estudos de cunho histórico que tentam compreender o desenvolvimento da psicologia humanista de Rogers no Brasil conforme visadas mais históricas (Campos, 2005; Gomes, Holanda, & Gauer, 2004; Justo, 2012; Tassinari & Portela, 2002; Trzan-Ávila & Jacó-Vilela, 2012). Destarte, segundo a nossa mirada historiográfica, intencionamos somar contribuições a tais estudos compreensivos ao desenvolvimento da ACP brasileira. Para isso, inicialmente, apresentamos o percurso metodológico que inspirou a pesquisa. Situamos, em seguida, alguns momentos de recepção e circulação da psicologia humanista de Rogers no Brasil. Especificamos e refletimos, finalmente, como as traduções de algumas obras de Rogers colaboraram para essa recepção e circulação.
Método: Organização historiográfica da pesquisa
Com o intento de cumprir o objetivo proposto, circunscrevemos nossa pesquisa segundo uma visada historiográfica de pesquisa bibliográfica. Hilgard, Leary, e McGuire (1998) apontam que esse tipo de investigação segue uma elaboração própria à criatividade dos seus pesquisadores. Assim, em uma primeira etapa, inspirados pela historiografia descritivo-analítica de Hilgard et al. (1998), desenvolvemos uma narrativa sobre o contexto de eventos, publicações e atores sociais que possibilitaram a recepção e circulação das ideias rogerianas no Brasil. Com base em alguns estudos inspirados pela mencionada historiografia, a descrição de tal contexto é organizada em uma narrativa de momentos históricos (Castelo-Branco & Cirino, 2016a; Castelo-Branco, Vieira, Cirino, & Moreira, 2016). Assim, recorremos ao trabalho de Tassinari e Portela (2002) sobre os momentos da abordagem centrada na pessoa, no Brasil, aprofundando o mencionado contexto.
Em uma etapa seguinte, nos inspiramos no aporte historiográfico de Brožek (1998), entendendo o levantamento das traduções de um determinado autor como um recurso útil de indicação do clima de recepção e circulação dele em uma localidade. Para tanto, recorremos ao índice de publicações rogerianas disponíveis nas obras de Rogers & Russell (2002) e Kirschenbaum (2007), as quais apresentam detalhadamente a vida e a obra do expoente humanista. A partir disso, buscamos em editoras e em periódicos brasileiros as traduções dos textos de Rogers, de modo a utilizar esse levantamento como um critério analítico de recepção e circulação das ideias rogerianas no Brasil, e fonte de reflexões sobre os seus desenvolvimentos locais. Ressaltamos que as obras de Rogers foram compiladas e lidas no idioma brasileiro, seguindo a cronologia de suas publicações originais. Expomos a seguir as duas etapas historiográficas.
Resultados
Revisitando os momentos da Psicologia Humanista de Carl Rogers no Brasil
Tassinari e Portela (2002) apontam quatro fases históricas da abordagem centrada na pessoa (ACP) no Brasil, a saber, pré-história (1945-1976), fertilização (1977-1986), declínio (1987-1989) e ascensão / renascimento (1990 em diante). Apropriamo-nos desse entendimento para analisar a recepção e circulação da psicologia humanista de Carl Rogers nesse país. Segundo as autoras mencionadas, em síntese: a pré-história é caracterizada pelo isolamento de alguns profissionais que trabalhavam com ACP no Brasil; a fertilização é caracterizada pela vinda de Rogers e dos seus colaboradores ao Brasil para ministrar palestras e workshops, em 1977, 1978 e 1985, estimulando a emergência de vários centros de formação, fóruns e escritos; o declínio é caracterizado pelo luto das mortes de Rogers e Rachel Léa Rosenberg, sua colaboradora mais proeminente no Brasil, e pela pouca produção de artigos, livros e teses sobre a ACP; na ascensão / renascimento ocorrem a emergência de diversos profissionais e pesquisadores brasileiros, ex-alunos da fase de fertilização, que promovem centros de formação, eventos e publicações. Propomo-nos, em seguida, avançar nessas descrições apontadas por Tassinari e Portela (2002).
Na pré-história da ACP no Brasil, de 1945 a 1976, é possível observar que, concomitantemente à assunção do aconselhamento não-diretivo e a difusão das ideias de Rogers nos EUA e no mundo, alguns psicólogos brasileiros contataram esse panorama e foram influenciados pelas ideias rogerianas, trazendo-as para o Brasil. Destacamos Mariana Alvim que, em 1945, foi aos EUA estudar instituições que tratavam jovens delinquentes e conheceu Rogers, quando ele então se mudara para a Universidade de Chicago. Ao retornar ao Brasil, no ano seguinte, Alvim trabalhou no Instituto de Seleção e Orientação Profissional da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. Outro destaque é Ruth Scheeffer, que, ao terminar o mestrado, no Teachers College da Universidade de Columbia, retornou ao Rio de Janeiro para lecionar na Pontifícia Universidade Católica (PUC), e depois na Universidade Federal do Rio de Janeiro e na Fundação Getúlio Vargas. Ressaltamos que Scheeffer empreendeu o seu trabalho na PUC com a colaboração do padre Antonius Benko que lecionava disciplinas sobre Rogers (Gomes et al., 2004).
No Rio Grande do Sul, na metade dos anos de 1950, o Irmão da Congregação Docente de La Salle, Henrique Justo, difundiu as ideias rogerianas sobre aconselhamento, psicoterapia e educação, após viajar para a França e fazer um curso com ex-estudantes de Rogers (Cavalcante & Montenegro, 2009; Gomes et al., 2004). Ao retornar ao Brasil, Justo fundou o curso de psicologia da PUC-RS (“Henrique Justo”, 1999).
Ainda nos anos de 1950, Oswaldo de Barros Santos graduou-se em Educação Física na Universidade de São Paulo (USP), fez uma especialização em orientação profissional na França e, posteriormente, se graduou em Psicologia Clínica, na Universidade Estadual da Flórida, e se pós-graduou na Universidade de Columbia, em 1957. Quando de volta ao Brasil, Santos trabalhou em diversos locais, propagando o aconselhamento não-diretivo em atividades de orientação profissional. Destacam-se os trabalhos na Escola Técnica Getúlio Vargas, no Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial e as docências na PUC-Campinas e na Universidade de São Paulo (USP), onde Santos se firmou, doutorando-se e implementando o primeiro curso brasileiro de aconselhamento não-diretivo e psicoterapia, além de realizar pesquisas com superdotados (“Oswaldo de Barros Santos”, 2003).
Provavelmente a primeira publicação no Brasil que disserta algo sobre Rogers está na tradução, em 1956, da obra Instruzione e personalità (Educação e Personalidade), de Roberto Zavalloni, um padre italiano franciscano e ex-aluno de Rogers na Universidade de Chicago. Posteriormente, foram publicados os primeiros livros sobre Rogers, escritos por autores brasileiros. Em especial, apontamos o livro de Ruth Scheeffer, Aconselhamento psicológico (1964), precursor na apresentação, para o público brasileiro, das ideias de Rogers sobre o aconselhamento não-diretivo. Indicamos, também, o livro de Henrique Justo, intitulado Carl Rogers: teoria da personalidade e aprendizagem centrada no aluno, publicado em 1973 (Gomes et al., 2004), e republicado, em 2002, com o título Cresça e faça crescer - lições de um dos maiores psicólogos: Carl Rogers. Consideramos essas obras como as pioneiras na divulgação do pensamento rogeriano no Brasil.
Em suma, o primeiro momento de recepção das ideias de Rogers no Brasil foi caracterizado pelo interesse de alguns psicólogos brasileiros que se dispuseram a fazer cursos e pós-graduações, ligados a Rogers, nos EUA e em outros países. Ao retornar para o Brasil, eles instituíram pioneiramente disciplinas que versavam algo do aconselhamento não-diretivo, e da educação centrada no aluno, e possibilitaram a circulação das ideias rogerianas e a formação ulterior de vários psicólogos brasileiros.
Na fase de fertilização da ACP no Brasil, de 1977 a 1986, esmiuçamos a vinda de Rogers ao Brasil. Em 1977, a convite de Eduardo Bandeira, Rogers veio ao Brasil para visitar as cidades do Recife, São Paulo e Rio de Janeiro, mas, antes de trabalhar nessas cidades, ele fez turismo na floresta amazônica. Até então, na América do Sul, ele somente visitara a Venezuela. Basicamente, Rogers veio ministrar algumas palestras e um workshop, uma modalidade de intervenção grupal que visa a formar facilitadores da ACP em uma imersão de encontros intensivos num espaço restrito ao longo de um tempo específico. O local foi a Aldeia de Arcozelo, em Paty dos Alferes, Rio de Janeiro, durante três semanas, com a participação de 200 pessoas (Bandeira, 2012).
Alguns resquícios dessa passagem estão disponíveis em uma entrevista que Rogers concedeu à Revista Veja (De Oliveira, 1977) e nas diversas cartas trocadas com Bandeira (2012). Interessamo-nos, contudo, em pontuar a impressão de Rogers sobre a sua vinda ao Brasil, com suporte num trecho retirado do livro A way of being (1980). Embora extensa, a seguinte citação é importante para o entendimento dessa impressão.
A mais recente e talvez mais arriscada empreitada em que me engajei foi a viagem que fiz ao Brasil, juntamente com quatro membros2 do Centro de Estudos da Pessoa. ... Eu mesmo receava um pouco um voo de quinze horas e coisa do gênero. Outros acreditavam que era muito arrogante supor que poderíamos influenciar um país tão grande. Mas a ideia de treinar facilitadores brasileiros era muito atraente. Iríamos nos encontrar com plateias de seiscentas e oitocentas pessoas nas três maiores cidades brasileiras. Eram reuniões de dois dias, nos quais ficaríamos juntos no total de doze horas. ... Ao lado de palestras bem curtas, tentamos fazer grupos sem liderança, grupos centrados em interesses específicos, um grupo de encontro de demonstração e um diálogo entre a equipe e a plateia. No início houve um grande caos, mas aos poucos as pessoas começaram a ouvir umas às outras. Houve críticas -algumas vezes violentas- à equipe e ao processo. ... Até então, jamais fizera uma viagem tão longa que tivesse sido tão proveitosa. ... Acredito que deixamos uma marca no Brasil, e o Brasil certamente nos transformou a todos. Certamente ampliamos a nossa visão sobre o que pode ser feito em grandes grupos (Rogers, 1980/1983, pp. 19-21).
Tal viagem ensejou uma afinidade de Rogers com o Brasil, ao passo que ele retornou em outras ocasiões, em 1978 e em 1985, e publicou três livros com alguns colaboradores brasileiros (Rogers & Rosenberg, 1977; Rogers, Wood, O’Hara, & Fonseca, 1983; Santos, Rogers, & Bowen, 1987). Dessa fertilização, além de Rosenberg e Santos, ambos docentes da USP, surgiram outros psicólogos que foram, posteriormente, se estabelecendo em diversas universidades, como Mauro Amatuzzi (USP-SP e PUC-Campinas), Henriette Morato (USP-SP) Jaime Doxsey (UFES), Vera Cury (PUC-Campinas), Virginia Moreira (UNIFOR) e William Gomes (UFRGS), apenas para citar alguns (Gomes et al., 2004). Soma-se isso à residência de John Wood no Brasil, um colaborador de Rogers que estabeleceu docência na PUC-Campinas, de 1985 a 1989 (Moreira, Landim, & Romcy, 2014). É digna de menção especial a tese de doutorado, não publicada, de Lucila Schwantes Arouca, intitulada Fundamentos fenomenológico-existenciais da comunicação professor-aluno, defendida em 1977, na PUC-SP (Gomes et al., 2004). Esse escrito, provavelmente, foi um dos estudos brasileiros pioneiro na reflexão das ideias rogerianas à luz da Fenomenologia-Existencial.
Dessa fase de fertilização da ACP no Brasil, decorreu um período de declínio, de 1987 a 1989. Com as mortes de Rogers e Rosenberg, em 1987, o movimento de ACP brasileira entrou em luto. Rosenberg exercia uma interlocução direta com Rogers e uma liderança ativa na divulgação e na prática de suas ideias no Brasil (Morato, 2008). Como efeito do falecimento de ambos o movimento nacional perdeu força, havendo uma diminuição significativa de eventos e publicações sobre a ACP (Tassinari & Portela, 2002). Nesse movimento de baixa, observamos algum marcos que possibilitaram novos ares e um impulso para a ACP brasileira.
O primeiro se remete à dissertação de Virginia Moreira, naquela época conhecida como Virginia Leitão, intitulada Limites da abordagem centrada na pessoa, defendida em 1984, na Universidade Federal do Ceará, e a sua tese chamada Para além da pessoa: um estudo crítico da psicoterapia de Carl Rogers, defendida em 1990, na PUC-São Paulo. Em ambos os estudos, Moreira (1984, 1990) argumenta que as ideias rogerianas possuem uma visão de homem individualista, capitalista e apartada das contendas sociais do mundo. Em superação a isso, a autora estabelece uma aproximação crítica das ideias de Rogers com a fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty e de outros autores, como Paulo Freire. As ideias de Moreira circularam em diversos encontros latino-americanos de ACP e seus estudos de pós-graduação foram organizados e publicados no livro Más allá de la persona: hacia una psicoterapia fenomenológica mundana, em 2001, no Chile. Posteriormente, esse livro foi reorganizado e lançado no Brasil, em 2007, sob o título De Carl Rogers à Merleau-Ponty: a pessoa mundana em psicoterapia. Após uma estada na Universidade de Santiago no Chile, Moreira estabeleceu docência na Universidade de Fortaleza (UNIFOR), realizando diversas pesquisas que usam como base os referenciais de Rogers, de Merleau-Ponty e da psicopatologia crítica, para desenvolver uma proposta de clínica humanista-fenomenológica (Moreira, 2009).
O segundo se refere aos estudos de Mauro Martins Amatuzzi. Em 1988, ele concluiu o doutorado na Universidade de Campinas, com a tese O resgate da fala autêntica: uma aproximação filosófica da tarefa do psicoterapeuta e do educador, posteriormente publicada como livro, em 1989, sob o título de O resgate da fala autêntica: filosofia da psicoterapia e da educação. Nesta obra, Amatuzzi (1989) se aproxima da fenomenologia de Merleau-Ponty, da pedagogia de Freire e da filosofia existencial de Martin Buber para propor implicações desses pensamentos para a elaboração de um modelo de relação horizontal de fala e escuta de expressões autênticas. Essa ideia esteve em sua proposta de psicologia humanista, notoriamente de base rogeriana, e se desenvolveu em estudos posteriores (Amatuzzi, 2001, 2010). Amatuzzi foi docente da USP (1987-1994) e da PUC-Campinas (1991-2012), onde desenvolveu diversas pesquisas fenomenológicas sobre grupos, psicologia clínica e religiosidade. Além de formar em nível de pós-graduação diversos psicólogos humanistas, atualmente reconhecidos no cenário nacional, como Adriano Furtado Holanda, Tommy Akira Goto, Vera Engler Cury, entre dezenas de outros psicólogos cujos nomes são impossíveis de mencionar nesse espaço, porém não menos engajados.
Moreira e Amatuzzi possuem vasto número de publicações sobre a ACP, o que permite reconhecê-los como figuras de liderança sobre essa abordagem no Brasil (Gomes et al., 2004). Ambos participaram das vindas de Rogers ao Brasil e se inspiraram nele para estabelecer diálogos com a fenomenologia, nos campos da clínica, da educação e da pesquisa. Frutos de uma fertilização da ACP no Brasil, mas imersos em um período de transição entre o declínio, e a ascensão/renascimento da ACP no Brasil, de 1990 em diante, Moreira e Amatuzzi possibilitaram uma nova visada à ACP com base nos aportes da fenomenologia. Obviamente, outros autores, imersos no mesmo contexto, também, contribuíram para isso, somando outras leituras à Psicologia Humanista de Rogers. Além das propostas de Amatuzzi e Moreira, diversas outras produções podem ser apontadas como expressivas naquele período de transição (Boainain, 1998; Cury, 1987; Fonseca, 1988; Freire, 1989; Holanda, 1998; Mahfoud, 1999; Morato, 1999; Rosenberg, 1987).
Notamos que, nas décadas de 1980-1990, começa a se desenvolver uma ACP brasileira marcada pela recepção crítica das ideias de Rogers. Estas, em suma, foram recebidas de uma maneira problematizadora dos seus limites sociais e relacionais, e repensadas, frequentemente, conforme os aportes da Fenomenologia. Decorre disso não mais uma ACP de Rogers no Brasil, mas uma ACP brasileira, composta por autores nacionais e teorias e práticas que passam a circular e a se desenvolver de modo próprio e distinto do solo estadunidense. Consideramos, portanto, que esses momentos da recepção e circulação da psicologia humanista de Rogers no Brasil podem ser mais bem entendidos, conforme nossa próxima análise sobre as traduções dos livros de Rogers para o português brasileiro.
Análise das traduções dos livros de Carl Rogers para o português brasileiro
O contexto de recepção e circulação das ideias de Carl Rogers no Brasil possibilitou as primeiras traduções de algumas obras desse autor, inseridas entre o momento, pré-histórico da ACP brasileira (de 1945 a 1976), e o de sua fertilização (de 1977 a 1986). Para exemplificar, fizemos um levantamento das obras publicadas por Rogers e suas traduções para o português brasileiro. Trazemos esses indicadores, em seguida, na tabela 1.
Algumas observações em relação aos livros listados na tabela 1: Counseling with returned servicemen foi traduzido, em 2000, para o português de Portugal, com o título de Manual de counseling, porém não está mais em edição; Psychotherapie en menselyke verhoudingen não foi publicado nos EUA, mas na Holanda. Ainda não existe tradução para o inglês; On becoming a person tem uma tradução em Portugal, em 1970, pela extinta Editora Moraes. Muitos brasileiros se valeram dessa versão antes da tradução para o português brasileiro; Psychotherapie et relations humanies: theorie et pratique de la therapie non-directive foi publicado na Bélgica e não está integralmente traduzido para o inglês, embora contenha um capítulo que Rogers, também, publicou, em 1959, no livro organizado por Sigmund Koch, Psychology: a study of science. Esse capítulo foi intitulado “Formulations of the person and social contexto”.
A despeito das mencionadas obras traduzidas, constatamos, ainda, a existência de três livros de Rogers que foram somente publicados no Brasil, em colaboração com alguns psicólogos brasileiros, como Rachel Rosenberg, Afonso Fonseca, Antônio dos Santos, Maria Bowen. Verificamos, também, três entrevistas de Rogers disponíveis em obras organizadas por outros autores (Willard Frick e Richard Evans), entre eles um brasileiro (Antônio dos Santos). A tabela 2, a seguir, organiza esses dados.
É digno de menção o livro organizado por Wood et al. (2008), um colaborador de Rogers residente no Brasil, intitulado Abordagem centrada na pessoa, publicado em 1994 pela Editora da Universidade Federal do Espírito Santo (EDUFES). Nessa obra, constam traduções de seis artigos de Rogers considerados seminais ao seu pensamento. Incluímos essa amostra bibliográfica nos dados registrados.
Com base nisso, indicamos que, dos 18 livros publicados por Rogers em países estrangeiros, 14 foram traduzidos para o português brasileiro, somando-se a outros 3 livros publicados por ele somente no Brasil. Destarte, existem 17 obras de Rogers publicadas no Brasil, além de haverem 3 livros que contêm entrevistas dele transcritas na integra e 1 livro que com traduções de alguns dos seus artigos seminais. Consideramos, pois, esses 21 escritos como as obras representativas de Rogers publicadas no Brasil. Ressaltamos que a editora brasileira que mais publicou os livros de Rogers foi a Martins Fontes (totalizando 5 livros e 1 entrevista).
Observamos que os primeiros escritos de Rogers traduzidos foram O homem e a ciência do homem e Liberdade de aprender, ambos publicados em 1973. Nos anos de 1970, especificamente de 1973 a 1979, concentra-se o maior número de publicações das obras de Rogers no Brasil, totalizando 13 (n = 61,9%); na década de 1980, de 1983 a 1987, foram publicados 5 livros (n = 23,8%); nos anos de 1990 somente foram publicados 2 dois escritos (n = 9,5%); e, na década de 2000 somente foi publicada 1 obra (n = 4,8%). Observamos que nos anos de 1970-1980 ocorreram o período áureo de publicações das obras de Rogers no Brasil (n = 85,7%), enquanto os anos de 1990-2000 denotam um declínio em relação a tais publicações (n = 14,3%). Na década de 2010 até o presente momento, 2017, não houve nenhuma nova tradução de algum livro de Rogers para o português brasileiro; todavia, 3 opúsculos de Rogers foram traduzidos e publicados em um periódico humanista nacional (Rogers, 1957/2014; Rogers & Buber, 1957/2008; Rogers & Tillich, 1965/2008).
Sobre a atual edição desses livros no Brasil, 7 continuam a ser editados, a saber, Psicoterapia e consulta psicológica, Tornar-se pessoa, Grupos de encontro e Sobre o poder pessoal, pela Editora Martins Fontes; e, Um jeito de ser e A pessoa como centro, pela Editora Pedagógica Universitária (EPU). O livro organizado por Wood e outros, Abordagem centrada na pessoa, também, encontra-se em edição pela EDUFES.
Essa organização de publicações caracteriza, segundo ajuizamos, a recepção e circulação da psicologia humanista de Rogers no Brasil. Obviamente, muitos autores brasileiros produziram livros sobre Rogers ou utilizaram o referencial dele nos campos teóricos, práticos e de pesquisa, mas esse não foi o foco deste estudo, dado que nos remetemos a Rogers como fonte primária desse levantamento.
Enfatizamos, destarte, alguns apontamentos em relação a esse levantamento de traduções das obras de Rogers para o português brasileiro. (1) Diferentemente dos livros de Sigmund Freud, por exemplo, as obras de Rogers estão dispersas em várias editoras, muitas sem uma atual edição. Essa dispersão, conforme ajuizamos, dificulta o acesso integral das ideias de Rogers em seu desenvolvimento cronológico.
(2) Os principais livros de Rogers que apresentam suas sistematizações teóricas e clínicas, Terapia centrada no cliente (1951) e Psicoterapia e relações humanas - Volume 1 (1959 ) e Volume 2 (1962), não estão mais sendo editados. Estes contêm as seguintes teorias: da personalidade e do comportamento; das condições necessárias e suficientes para a mudança terapêutica da personalidade; das relações humanas; da pessoa em funcionamento pleno. Uma elaboração desta última pode ser acessada na obra Tornar-se pessoa (1961); todavia, as demais estão nas mencionadas obras sem edição, o que dificulta um conhecimento direto aos escritos do criador. Com efeito, surgem algumas acusações da psicologia de Rogers ser destituída ou desinvestida de um adensamento teórico, sendo reduzida ao mero exercício de três atitudes: congruência, consideração positiva incondicional e compreensão empática (Amatuzzi, 2010).
(3) O mesmo acontece com as entrevistas com Rogers que possibilitam ao leitor outro entendimento de sua vida e obra. Nas entrevistas de Rogers concedidas a Willard Frick, Psicologia Humanista: entrevistas com Maslow, Murphy e Rogers (1971), Richard Evans, Carl Rogers: o homem e suas ideias (1975), e David Russell, Carl Rogers: the quiet revolutionary: an oral history (2002), é possível encontrarmos o relato minucioso e extenso dos aspectos biográficos, contextuais e históricos que permearam a formação pessoal, científica e cultural de Rogers durante a sua vida. Como as obras de Frick e Evans não estão mais em edição e a livro de Russell não está traduzido, ponderamos que os mencionados aspectos se tornam restritos em seu acesso, conhecimento e divulgação. Para exemplificar, no Brasil, pouco se discute o trabalho de Rogers com veteranos de guerra regressos da Europa e suas consultorias à Central Intelligence Agency (CIA).
(4) Os principais livros educacionais de Rogers, Liberdade de aprender e Liberdade de aprender em nossa década não estão sendo mais editados -o que, também, restringe o acesso pleno as ideias educacionais do psicólogo humanista. As contribuições de Rogers excederam o âmbito clínico. Partindo das atitudes relacionais desenvolvidas nela e desenvolvendo outros conceitos, como o de aprendizagem significativa, Rogers desenvolveu um tratado educacional com base em suas experiências de ensino em universidades e outras instituições.
(5) Existem dois livros de Rogers, não traduzidos para o português, que tratam o seu plano metodológico de pesquisas experimentais e empíricas sobre os processos de mudança de personalidade na clínica, Psychotherapy and personality change (1954) e The therapeutic relationship and its impact: a study of psychotherapy with schizophenics (1967). Nestas obras, bastante extensas, perdemos o acesso de como Rogers conseguiu validar a sua proposta de psicoterapia centrada no cliente para a American Psychological Association (APA). Somente na obra Tornar-se pessoa (1961), há dois capítulos que apresentam suscintamente esse ponto do pensamento rogeriano. Embora sejam ilustrativos, esses textos não expressam totalmente a diversidade metodológica que Rogers desenvolveu com dezenas de colaboradores em pesquisas clínicas. Dessa forma, reduz-se Rogers a um psicólogo que desenvolveu todo o seu conhecimento mediante a sua experiência -o que constitui equivoco, observando-se o que ele, também, desenvolveu pesquisas pioneiras sobre processos de mudança de personalidade e eficiência terapêutica.
Entendemos, portanto, que a consequência geral desses cinco apontamentos é uma dificuldade no (re)conhecimento total dos planos de pesquisa e de fundamentação teórica, clínica e educacional de Rogers, além do conhecimento parcial da vida e da obra desse autor conforme as suas narrativas. Por copilar diversos artigos de Rogers publicados na década de 1950, que versam esses assuntos, provavelmente, a obra Tornar-se pessoa (1961) é a mais conhecida no Brasil. A leitura desse livro possibilita um acesso parcial, embora profícuo, à totalidade do pensamento de Rogers, que continuou a progredir nas décadas seguintes.
Argumentamos, por fim, dois fatores que, possivelmente, contribuíram para a ascensão de um movimento brasileiro ACP pós-Rogers de orientação fenomenológico-existencial. O primeiro se remete às traduções de Rogers dispersas em vários anos. Isso pode ter acarretado uma sobreposição filosófica fenomenológico-existencial como fundamentação da teoria de Rogers, que foi simpático ao movimento fenomenológico na Psicologia estadunidense e estabeleceu diálogo com os pensamentos existenciais de Søren Kierkegaard e Martin Buber. Esse foi o caminho que muitos autores brasileiros encontraram para aprofundar essas filosofias e as implicarem à ACP -possivelmente mais do que o próprio Rogers (Castelo-Branco & Cirino, 2016b; Holanda, 1998; Vieira & Pinheiro, 2011). O segundo ocorre mediante a uma das vindas de Rogers para o Brasil, em 1985, quando, em uma fala, ele deixou claro sua aversão a rogerianismos, salientando que ele mesmo não era um rogeriano e que o seu pensamento era aberto a outras possibilidades de desenvolvimento (Moreira, 2010). Ou seja, o próprio Rogers deu permissão para outras utilizações e fundamentações de sua abordagem lhe sendo elas contínuas ou descontínuas. Ele afirmou que cada psicólogo deveria encontrar o próprio caminho no jeito de ser centrado na pessoa (Tassinari & Portela, 2002).
Considerações finais
Em uma medida contra o esquecimento, o trabalho histórico de pesquisa em psicologia implica em uma incessante revisão do passado, relacionando-o com o presente, em seus aspectos universais, matriciais e locais. Neste sentido, este estudo buscou (re)constituir um panorama histórico da recepção e circulação da psicologia humanista de Carl Rogers no Brasil, nos anos de 1940 a 2010. Para dar conta dessa extensa delimitação temporal, organizamos uma divisão dos momentos de recepção e circulação da psicologia humanista de Rogers no Brasil; e analisamos as publicações de suas obras traduzidas para o português brasileiro. Embora possa nos ter escapado algum dado, ajuizamos que tais critérios forneceram informações compreensivas ao desenvolvimento histórico de uma abordagem centrada na pessoa (ACP) brasileira. A história da psicologia, que se ocupa da compreensão do horizonte de recepção e circulação, longe de ser exercida como mecanismo avaliativo de um conhecimento em detrimento de outro, implica uma historiografia local que reconhece os elementos que há em tal propagação e apropriação, sejam eles esquecidos ou naturalizados nas contendas atuais.
A despeito das informações obtidas e ponderadas, ressaltamos que elas devem ser entendidas com certa cautela, por terem sido realizadas com base em análises parciais, porém representativas ao estudo da recepção e circulação da psicologia humanista de Rogers no Brasil. Para maior realização, recomendamos estudos sobre: as traduções de obras dos colaboradores de Rogers; os livros produzidos por autores brasileiros; os artigos que circulam em bases de dados virtuais, por exemplo, o Scientific Electronic Library Online (SciELO) e o Periódicos Eletrônicos em Psicologia (PePSIC); as teses e dissertações defendidas no período compreendido. A realização de uma historiografia local, como em Fortaleza ou em Campinas, seria outra possibilidade de investigação sobre a recepção e circulação da ACP em regiões brasileiras.
Esperamos que, futuramente, a realização de tais estudos se concretize, gerando uma ampliação compreensiva sobre os aspectos históricos da ACP brasileira e suas singularidades em relação as suas manifestações em outras localidades do mundo. Embora não exaustivo, por ora, consideramos que este estudo oferece um apoio e uma visada que amplia o alcance e o interesse pelo tema da história da ACP no Brasil.
Resumo:
Introdução
Método: Organização historiográfica da pesquisa
Resultados
Revisitando os momentos da Psicologia Humanista de Carl Rogers no Brasil
Análise das traduções dos livros de Carl Rogers para o português brasileiro
Considerações finais